quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

«Outro amor virá, nunca saberás esperá-lo»

As cartas a arder dentro de um prato de alumínio, o fogo a devorar aquelas letras desenhadas há tanto tempo, palavras a unirem dois corpos separados pela incompreensão do mundo diante do amor, dois corpos ávidos,
"deixa-te disso, é preciso seguir em frente",
para as minhas amigas não custa nada, elas que vivem com maridos perfeitos, fechadas dentro de casamentos tão de capa de revista que já têm os lábios moldados ao sorriso necessário, elas que não souberam nunca, ou já esqueceram, o que é o amor assim, tão cheio de abismos e queimaduras, os corpos ávidos ardendo numa noite de há muitos anos, naquele vão de escada e agora nas folhas de papel que o fogo oblitera,
"deixa-te disso, é preciso seguir em frente",
as amigas com os discursos pré-fabricados das ilusões mútuas, sobre o luto dos sentimentos e a necessidade de sobreviver aos naufrágios sentimentais, as amigas claustrofóbicas com medo dos meus olhos, do que ainda assoma neles da memória dos corpos, com medo deste êxtase que me consumiu e que seria impossível nas camas delas, dentro dos lençóis sem mácula, diante de espelhos sempre limpos e bem comportados,
"deixa-te disso, é preciso seguir em frente",
dizem elas, temerosas dos riscos que não correram, lembrando talvez a forma como abandonei tudo para ir atrás de uma promessa, farta das cartas que me escrevia de tão longe, sempre demasiado longe, com o desejo a ler-se à transparência na caligrafia desajeitada de menino do colégio, uma tarde apareci-lhe no quarto de hotel em Copenhaga, e ele fingiu que estava à minha espera, como se fosse a coisa mais natural do mundo eu estar ali, intrometendo-me num congresso de filósofos circunspectos, a milhares de quilómetros da casa que já não era minha,
"deixa-te disso, é preciso seguir em frente",
como se elas soubessem o que isto é, ter a vida toda a arder à nossa frente, dentro de um prato de alumínio, o coração devastado, as memórias arrepiando a pele como no primeiro beijo, à porta de um cinema, ainda a luz dos néons a piscar nestes meus olhos exaustos,
"deixa-te disso, é preciso seguir em frente",
eu sei que é preciso seguir em frente, atravessar o deserto das ruas cinzentas e do silêncio do quarto, a cama tão fria às cinco da manhã quando os pesadelos estilhaçam o sono com as pancadas secas da dor, essa dor maldita que não se vai nunca e que eu afogo com comprimidos a horas certas e serões estúpidos a fazer zapping diante de um televisor mudo, saltando entre as recordações que as labaredas reduzem a nada,
"deixa-te disso, é preciso seguir em frente",
e eu sigo em frente, tentando acreditar que algures no futuro está o homem que me salvará, depois de todas as feridas, depois da chuva que varre a calçada e arrasta as folhas mortas, o meu "próximo amor", dizem as minhas amigas, elas que não imaginam o quanto de mim vai nestas cinzas que o vento agora espalha.


José Mário Silva

1 comentário:

pinguim disse...

falar e dizer o que as amigastanto repetiam é muito fácil, pior é fazê-lo. tambem me vejo em ti (:

gosto muito de ti *